Balada para D.Quixote

Um olhar de viajante na última carruagem do último combóio de uma Memória intemporal.

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Localização: Covilhã, Portugal

A generalidade daquilo que você (e eu) julgamos saber, pode estar errado, porque, em regra, assenta em «informação» com falta de rigor e imparcialidade, vinda de quem interessa formatar a nossa mente. Pense você mesmo! Eu faço-o!

15.1.10

Vem aí o Teófilo. Fujam!...



Palavras com «êxodo da população» e «refugiados», não é habitual serem referidas quando se fala na História da Covilhã. Mas, ainda que em escala mal definida, essas coisas aconteceram por aqui e o Pelourinho é, uma vez mais, testemunha desse tempo conturbado.

Basta que apontemos o ponteiro do tempo e da memória para o ano de 1919 do século XX. Em Janeiro, com a dramaticidade de um verdadeiro «salve-se-quem-puder», uma palavra de ordem  foi passando na população de boca em boca: - “Vêm aí o Teófilo. Fujam!”. Este episódio só o conheço devido a tradição oral que o trouxe até mim. Diversas vezes ouvi pessoas mais velhas referirem-se ao incidente, relatando que, - “...então muita gente abandonou as suas casas, de onde retirou apressadamente roupas, víveres e até imagens de santos, para se ir refugiar algures nos arredores e na floresta da encosta da Serra”.

O episódio tem um suporte histórico. É factual que em 10 de Janeiro de 1919 ocorreu uma «revolta republicana» na Covilhã e em outras cidades do país. Para forçar a rendição dos revoltosos, que ocorreria em 15 de Janeiro, veio ocupar militarmente a cidade uma coluna militar – ficou conhecida como a «coluna negra» - comandada pelo então tenente Teófilo Duarte.

Este era apoiante de Sidónio e curiosamente tinha estudado neste Distrito, no Colégio de São Fiel, próximo da Covilhã, um colégio dos jesuítas. Após a morte de Sidónio Pais, foi alto-comissário no distrito de Castelo Branco, tendo-se revoltado contra o governo de José Relvas. Para se entender algo que parece insólito – terem eclodido na Covilhã e em outros pontos do país «revoltas republicanas» - quando o República era o regime oficial do país desde 1910, terá que aprofundar-se um pouco o ambiente político e social que então se vivia em Portugal.

Sidónio Pais, justamente apelidado de Presidente-Rei, tinha «reinventado» a República e a Constituição de 1911 por forma a criar uma figura política, então ainda não conhecida no Portugal republicano: o presidencialismo. Fora assassinado em Lisboa um mês antes e o rasto político que deixara no país estava longe de se extinguir. Remotamente, as suas ideias para Portugal iriam ter continuidade no surgimento do Estado Novo após a revolução de 1926.

Para se compreender o que foi o consulado de Sidónio Pais – tão idolatrado pelo povo humilde e a expectativa benévola da União Operária Nacional, quanto odiado pelos republicanos mais radicais e pela sempre poderosa Maçonaria – bastará dar um pequeno exemplo: o Governo de Sidónio não tinha ministros, apenas secretários de Estado, ignorando completamente o Congresso dos Deputados que, por sua vez, o hostilizava abertamente.

O Congresso dos Deputados, aquele lugar onde seria suposto serem feitas serenamente e com competência as leis que iriam reger a República, era – infelizmente ainda é, muitas vezes - um local onde se fazia tudo por exibir o lado mais negativo do parlamentarismo – onde se trocavam insultos e acusações pessoais e políticas entre os congressistas, quando não bengaladas e desafios para duelos.

Interpretando tudo isso Sidónio entendeu que, no interesse superior do país, deveria ignorar por completo o Congresso e governar mesmo quando em evidente ruptura com a Constituição de 1911.
Noutro movimento inconstitucional, a 11 de Março de 1918 por decreto, estabeleceu o sufrágio directo e universal para a eleição do Presidente da República, subtraindo-se à necessidade de legitimação no Congresso e enveredando por uma via claramente plebiscitária. Sidónio Pais governava através de decretos, por vezes ditatoriais.

Por tudo isto, dizia-se que havia uma “República Velha”, a que assentava nos cânones da Constituição de 1911 e uma “República Nova”, a sua.
Seria assassinado uma mês antes de ocorrerem os acontecimentos relatados na Covilhã, onde eclodira uma revolta de partidários da República Velha. Todo esse encadear de acontecimentos iriam enquadrar-se naquilo que ficou conhecido por Monarquia do Norte, entre Janeiro e Fevereiro que comentará num outro texto.

Realmente Portugal teve nesse ano uma experiência radical de regionalização: Durante cerca de dois meses o país viveu a experiência política de ter duas regiões demarcadas até ao limite e em cada uma delas, regimes diferentes: uma República e uma Monarquia. Quando hoje se propõe dividir o nosso pequeno país em micro reinos da burocracia, para dar emprego a políticos desocupados que levarão atrás de si  pequenos batalhões de funcionários inúteis e dispensáveis que o Orçamento do Estado terá de pagar, devíamos reflectir no país historicamente somos.

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13.1.10

Adagio para um Coronel Louco - III



Analistas de dentro do Batalhão viram na “queixa” do Cabo contra o Major,  uma oportunidade que caiu ao colo do Comandante para se descartar do Major que odiava (afinal, ele odiava toda a gente ...).
... continuado
Deu luz verde à abertura de um Inquérito e, como relator nomeou um oficial que também não apreciava particularmente o Major. Sem a conivência do Comandante do Batalhão, o assunto não teria tido consequências...

O Cabo miliciano Mateus Ramos –  esbofeteado -, era um homem inteligente com uma cultura acima da média, grande leitor de livros; recordo especialmente a sua admiração por Florbela Espanca (que gostava de ler em voz alta) e Pitigrili, um autor de sucesso na altura; gostava de atletismo e praticava-o sem intenções competitivas. Nesta modalidade, impressionava-me a quantidade de recordes desportivos que ele memorizava. Da sua boca ouvi pela primeira vez referência a um atleta do Sporting, chamado Manuel Faria – o primeiro vencedor português da corrida de S. Silvestre em S. Paulo Brasil -  que, contava ele, andava a trabalhar nas obras do estádio do clube e, enquanto os atletas corriam no campo, ele com as suas botas de trolha, procurava acompanhá-los fazendo o percurso pelo exterior, até ao momento em que o Professor Moniz Pereira o chamou para treinar sob a sua orientação técnica.


O Aspirante a oficial e comandante do pelotão, a quem o inoportuno insecto se preparava para picar. também não era um vulgar militar. Chamava-se Filipe Rosário e viria a ser conhecido no mundo do teatro e da TV como o actor “Filipe Ferrer”. Figura ímpar em inúmeras peças de teatro e, ultimamente também como intérprete de telenovelas. Na altura e enquanto pessoa, era um daqueles raros seres a quem só se conhecem amigos, começando por colegas e subordinados no Batalhão de Caçadores 2, mas também na própria Cidade, onde acolhido com simpatia pela sua forma descontraída de estar na vida e ainda por ser o grande dinamizador da actividade teatral local então emergente. 

Vários dos intérpretes desta ocorrência - verdadeira mostra do que era o ambiente humano dentro dos quartéis, três anos antes da eclosão das guerras independentistas em África – já não se encontra infelizmente entre nós. Refiro-os pelo seus autênticos nomes, como homenagem à sua memória e também como contributo para a História dos que nunca entram na História.

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12.1.10

Adagio para um Coronel Louco - II



Pelo regulamento de disciplina militar, um oficial superior possui “palavra de honra”, significando que, em caso conflito disciplinar, a sua palavra basta e não há oportunidade para contraditório; já o mesmo privilégio não era concedido aos militares de baixa patente, como era o caso.

Porém, contrariando todas as previsões a “queixa” do Cabo miliciano, seguiu o seu caminho e em consequência do “auto” produzido, o Major viu registado no seu currículo militar uma “advertência” e foi coercivamente transferido para outra unidade. Para entendermos este desfecho, vamos ter que conhecer os protagonistas. Vamos ter de situarmo-nos no tempo e no ambiente em torno dos  acontecimentos. Comecemos por aqui.

Decorria o mês de Maio de 1958. Humberto Delgado tinha-se apresentado como candidato à Presidência da República. Percorria o país despertando enorme entusiasmo popular. Para trás ficara já o “obviamente demito-o”; as recepções apoteóticas no Porto e na estação de Santa Apolónia quando do seu regresso à capital iriam suceder-se noutros locais. O seu staff de campanha programara uma viagem eleitoral à Covilhã.

O Ministério da Guerra preocupado, dera antecipadamente ordens para a convocação de reservistas e a colocação dos quartéis em prevenção simples. Na tarde do dia em que a caravana do General Delgado ia passar na rua onde se encontra o edifício do então Batalhão, o Comandante deu tardiamente ordem para que fosse encerrada a Porta d’Armas do quartel. Tarde demais porque entretanto, dezenas de soldados – sobretudo entre os reservistas mobilizados – já atravessavam o portão e se colocavam na rua vitoriando a caravana de Delgado. É neste enquadramento temporal que decorre o incidente da bofetada.

Para o Major Castelo Branco de onde partiu a agressão, parecia estar guardado o papel de vilão. Não era bem assim. De pequena estatura, magro e ágil, era uma pessoa extremamente nervosa e impulsiva, mas, num ambiente militar em que nos patamares mais elevados, os maus são em maior número que os bons, ele decididamente não pertencia aos primeiros. Aquele seu acto de histeria nervosa, resultou de um acumular de tensões dentro dele, induzidas pelo seu superior imediato (melhor dito – tirano imediato) que, por ironia, apenas ostentava nas platinas da farda mais um galão que os seus, de Major, mas que o aterrorizava psicologicamente, tal como a vários outros – o Comandante do Batalhão.

O comandante da Batalhão de Caçadores 2 era um tenente-coronel - Peraltinha de seu nome. Personalidade estranhíssima, de cariz marcadamente psicótico. Poucos o conheciam no Batalhão e praticamente ninguém na Covilhã. Um misantropo, solteiro, sem amigos conhecidos, vivia entre o seu gabinete no quartel, o automóvel oficial com motorista que o transportava de um lado para o outro, e um pequeno quarto na Pensão Avenida junto ao Jardim Público, de onde nunca saía nem mesmo quando as  festas da cidade decorriam ali mesmo à porta.

Ao que se dizia, passeava para trás e para a frente no seu quarto da Pensão até altas horas da madrugada, como um animal enjaulado. Mantinha com os seus subordinados mais imediatos um relacionamento a rondar o surrealista. Mais do que uma vez foram vistos no seu gabinete, perfilados como soldados rasos, o próprio segundo comandante que era um Major e também o Major Castelo Branco que então comandava a escola de recrutas. A sua agressividade ameaçadora e o desprezo para com aqueles que obrigava a permanecer de pé e humildemente perfilados na frente da sua mesa, eram conhecidos por toda a Unidade Militar. Se alguém duvidasse da sanidade da mente daquele homem, o seu fim trágico, poucos anos depois, viria a confirmá-lo: suicidou-se com a própria arma. Continua ...

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11.1.10

Adagio para um Coronel Louco - I



O som da bofetada não chegou até aos duzentos militares que em formatura na Parada do quartel, estupefactos, a vimos aplicar ao nosso camarada de armas;  mas todos, sem excepção, a sentimos como se tivesse sido aplicada na nossa própria cara. 

O agredido, - um Cabo miliciano - rubro de surpresa e indignação, baixou-se para apanhar do chão o bivaque militar que lhe tinha caído da cabeça com a pancada, perfilou-se diante do agressor – um Major  – disse-lhe qualquer coisa que não conseguimos ouvir, fez a continência militar da praxe e foi ocupar de novo o seu lugar no pelotão.

Tudo isto se passa debaixo do arco principal da Parada do então Batalhão de Caçadores 2, actualmente Universidade da Beira Interior (UBI). O Batalhão de Instrução estava em formatura no local, para cumprir uma formalidade burocrática do exército: “o sorteio”. Este era mais uma das tentativas de aperfeiçoamento do sistema do recrutamento militar, já iniciado no governo de Teófilo Braga em 1911, durante aquele executivo que teve uma longa vida para a época, 328 dias - quase um ano. Só o governo de Afonso Costa, 13 anos mais tarde conseguiria superar esta longevidade e manter-se em S. Bento durante 390 dias. A I República era assim ...

A “formatura” destinava-se a atribuir por sorteio aos recrutas em parada, um papel com um número. Esse número iria serviria, no caso de haver excedentes de militares numa incorporação, ou razões de ordem familiar consideradas imperiosas (terem filhos ou familiares a seu encargo directo, por exemplo), para mais tarde decidir, em igualdade de circunstâncias, quem “passaria à disponibilidade” (iria para casa), imediatamente no fim da escola de recrutas e de efectuado o juramento de bandeira.

Só mais tarde se conhecerem os pormenores por detrás do insólito acontecimento ocorrido sob o arco romano da Parada: em determinado momento, em plena formatura, o cabo miliciano notara que no ombro e muito próximo do pescoço do comandante do pelotão à sua frente, um Aspirante a oficial miliciano, tinha pousado um ameaçador abelhão que a qualquer momento, poderia espetar o seu doloroso ferrão; naturalmente apressara-se a sacudi-lo com a mão.

Lá da frente da formação, o Major observara o gesto e interpretara-o, erradamente, como uma brincadeira e uma quebra de disciplina. Manda um ordenança chamar o militar, supostamente transgressor, à sua presença. Uma vez aí, por razões (psicológicas) que se tentarão explicar adiante, e sem que tivesse ocorrido qualquer troca de palavras entre ambos, dá-lhe a já referida bofetada, sem aparentemente querer saber se o seu acto, feito na presença de “inferiores” (militares menos graduados na gíria militar) do cabo miliciano,  para além de tudo o mais, também em si mesmo, constituía uma quebra grave da disciplina militar.

Com uma calma invulgar em alguém que acaba de ser publicamente humilhado e agredido, o Cabo miliciano levantou o bivaque do chão, colocou-o na cabeça, perfilou-se e, em conformidade com as normas militares vigentes, pediu ao seu superior (e agressor). permissão para apresentar uma queixa formal contra ele, ao que o outro, ainda nervoso, anuiu.

Militares de várias patentes, com a experiência dada por muitos anos passados na tropa, ao tomarem conhecimento do ocorrido, foram peremptórios: o Cabo miliciano não tinha a mínima chance de, com a sua queixa, vir a incomodar minimamente o Major e ainda menos, que daí resultasse qualquer punição. – “Vai ser levantado um auto” – diziam -  “e aí, basta que o major declare em abstracto que o cabo o desrespeitou por palavras - por exemplo!...”.

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10.1.10

Histórias da Pequena Corrupção à Portuguesa



Um amigo, importador de produtos químicos para a indústria textil, pediu-me para o introduzir em algumas empresas de lanifícios junto das quais eu tinha contactos e conhecimentos. Nessa linha, um certo dia dos anos 80 estávamos ele e eu, perante o Mestre João - um homem simples e de rudimentar instrução - que era quem fazia as compras daquela fiação de fio cardado.

As diversas matérias primas-têxteis, componentes do fio que vai ser produzido, começam por ser dispostas em camadas umas sobre as outras para assegurar uma boa mistura final, e pulverizadas camada a camada, com um lubrificante apropriado, - está a ver-se que o meu amigo importava um desses lubrificantes -  que posteriormente facilitará o processo mecânico e reduzirá a indesejada quebra das fibras têxteis durante o processo;  a mistura lotada,  passa em seguida por uma pequena máquina de tambor rotativo, a partir da qual vai iniciar-se todo um processo que passará pela cardação e posterior fiação da matéria-prima.

A operação de cardação propriamente dita, é realizada por uma bateria de máquinas que accionam cilindros de vários diâmetros, todos eles revestidos com uma tela especial (muito cara) com finas puas de aço – dito “o puado” –, a quem compete desagregar as fibras têxteis da mistura e tanto quanto possível paralelizá-las, apresentando-as na sua fase final, já sob a forma de rolos de mechas devidamente calibradas e prontos para alimentarem as máquinas de fiação.

Para lubrificar as matérias-primas a cardar, Mestre João utilizava um produto tradicional - a “oleína” – uma substância orgânica e gorda proveniente de óleos vegetais. O meu amigo esforçou-se por convencê-lo a mudar para os novos “óleos sintéticos”, que tinha sobre a oleína vantagens e vantagens, ...um nunca mais acabar. Ao sairmos, o meu amigo vinha com uma encomenda de um tambor de 200 litros do seu fantástico “óleo sintético” que iria, dali em diante substituir o lubrificante ali usado.

Semanas mais tarde, Mestre João telefona-me aparentemente em pânico: – «Uma desgraça! Nem imagina!..» – «O lubrificante que F.. (o meu amigo) vendeu para aqui, estragou completamente o “puado” das cardas, que vai ter que ser substituído! – É um prejuízo enoooorme!...»

Fiquei preocupado. Tinha a noção de quanto custava um revestimento do puado de cada “carda”. Telefonei a F.. alarmado:  – «E agora!?». Para minha estranheza, o seu comentário foi calmo – «Ah! Já sei o que aconteceu! Desculpa, esqueci-me na altura!...» - A calma dele deixava-me completamente confuso. – «Tem paciência...» – diz-me ele – «Vai lá falar com o Mestre João e diz-lhe que esteja descansado porque “aquela parte” do costume, é para ele como já se sabe. É que só por esquecimento não lhe falei aí nisso. Quando passar de novo já lhe levo o dinheiro!.»
 
Fui, algo receoso do acolhimente que me esperava. Falei com o Mestre João, expliquei-lhe. Aceitou tudo sem problema de maior. Quando me preparava para sair, acompanhou-me à porta e disse: - «Olhe, para compensar o seu transtorno de ter que cá vir, diga a F que me pode mandar outro tambor do produto !...» - Céus, como aprendi! Afinal todo aquele problema, tinha uma solução simples: Luvas!. “Puado” a auto-regenerar-se assim tão instantaneamente, nem eu nem ninguém viu certamente mais.



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9.1.10

Vê, Quanto Ele Quer...?



A senhora jovem e bem vestida ao meu lado no balcão do Banco fez deslizar o cheque até ao bancário que atendia ao balcão: - “É para levantar!” - Olhei de forma displicente para o cheque e logo, logo, e os meus olhos arregalaram-se. O cheque, de uma importância razoável... era meu! Tinha-o emitido, apenas uns dias antes. Eu não conhecia a senhora que o apresentava a pagamento e ela, obviamente, também não me conhecia.
Mentalmente comecei a inventariar os cheques que tinha passado e, pela importância, acabei por identificar a pessoa para quem o emitira. Logo se me tornou clara a situação: A senhora que se propunha levantar o cheque (ao portador), seria certamente alguém próximo da pessoa a quem eu realmente o entregara.
Tinha toda a lógica: a interposição de uma terceira pessoa como recebedora do valor, tornava mais remota a possibilidade de se vir a relacionar a minha pessoa – enquanto emitente do cheque – com o seu real destinatário, porque aquele valor ... era o resultado de um discreto pagamento de “luvas” a um técnico, responsável pelas compras de certos produtos químicos necessários à laboração da fábrica. 
Corrupção – brada-se hoje por aí! Tecnicamente talvez, mas em termos práticos, não.
Neste este mercado têxtil, toda a gente sabia da existência de uma regra: «quem queria vender alguma coisa, teria que pagar algo a alguém de quem iria depender a compra». Disso, em regra beneficiavam «quadros intermédios» e técnicos, mas sempre recordarei as palavras daquele importante empresário – e socialmente um verdadeiro senhor – que, perante a iminência de iniciarmos negócios me disse liminarmente:
- “Meu caro: Quero para mim as importâncias que vocês – como fornecedores – se preparam para meter no bolso do meu técnico e... meu empregado. E se me confrontar com o que acabo de dizer-lhe fora deste escritório, eu nego!”. O que resultou foi que se teve que repartir as luvas por ambos, patrão e empregado, porque, a não ser assim, já sabíamos que os nossos produtos entrados para a fábrica sem o “agreement” do tintureiro, iriam ter todos os defeitos e mais alguns.
Em circunstâncias (anteriores) numa empresa industrial de lanifícios, fora-me dado o encargo de negociação e decisão na compra de uma caldeira automática (gerador industrial de vapor), para substituir uma outra ainda alimentada a lenha. Seleccionei o fornecedor e tentei “espremer” ao máximo o preço, até que chegámos à entrevista final da qual sairia a decisão da compra.
O representante da empresa fornecedora, antes de me indicar a verba final a que tinha sido possível chegar, encarou-me de frente (estávamos sós), e perguntou-me: - “Quanto é que você quer para si no negócio?” –surpreendido, respondi – “Para mim? Nada! Eu ganho o meu ordenado; isto é o meu trabalho!” – sorriu, bateu-me no ombro e disse: - “Está bem. Se quer assim, negócio fechado. Mas olhe que quem está na sua posição... da fama nunca se livra!” 
A forma de pagar luvas, variava um pouco. As empresas mais pequenas entregavam – ou propunham-se entregar, uma percentagem em dinheiro a quem podia (ou não) comprar-lhes.
As grandes multinacionais também o faziam. E fazem. Utilizavam e utilizam métodos mais sofisticados: oferta de viagens e estadias no estrangeiro a pretexto de inexistentes congressos, visitas às instalações da empresa a pretexto da apresentação de pseudo-novos produtos, etc.; também havia “brindes” mais ou menos valiosos. Tão valiosos, que podiam até materializar-se na oferta das chaves de um automóvel ou nas de um novo apartamento.
Por vezes rebentava um efémero escândalo, como o daquela técnica de tinturaria, a quem uma multinacional, fez oferta de um apartamento a estrear, e a senhora, num assomo de ética profissional, deu conhecimento do facto à direcção da empresa.
A multinacional ainda hoje lá (e cá) está, integrada num outro grupo capitalista, a senhora acabou por sair da empresa algum tempo depois, a empresa têxtil extinguiu-se juntamente com dezenas de outras numa crise anunciada do sector que acabou por acontecer, e estas luvas, que, como diria Carlos Drumond de Andrade, fazem parte integrante do enredo, continuarão a “usar-se” enquanto houver mercado.

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