Balada para D.Quixote

Um olhar de viajante na última carruagem do último combóio de uma Memória intemporal.

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Localização: Covilhã, Portugal

A generalidade daquilo que você (e eu) julgamos saber, pode estar errado, porque, em regra, assenta em «informação» com falta de rigor e imparcialidade, vinda de quem interessa formatar a nossa mente. Pense você mesmo! Eu faço-o!

9.1.10

Vê, Quanto Ele Quer...?



A senhora jovem e bem vestida ao meu lado no balcão do Banco fez deslizar o cheque até ao bancário que atendia ao balcão: - “É para levantar!” - Olhei de forma displicente para o cheque e logo, logo, e os meus olhos arregalaram-se. O cheque, de uma importância razoável... era meu! Tinha-o emitido, apenas uns dias antes. Eu não conhecia a senhora que o apresentava a pagamento e ela, obviamente, também não me conhecia.
Mentalmente comecei a inventariar os cheques que tinha passado e, pela importância, acabei por identificar a pessoa para quem o emitira. Logo se me tornou clara a situação: A senhora que se propunha levantar o cheque (ao portador), seria certamente alguém próximo da pessoa a quem eu realmente o entregara.
Tinha toda a lógica: a interposição de uma terceira pessoa como recebedora do valor, tornava mais remota a possibilidade de se vir a relacionar a minha pessoa – enquanto emitente do cheque – com o seu real destinatário, porque aquele valor ... era o resultado de um discreto pagamento de “luvas” a um técnico, responsável pelas compras de certos produtos químicos necessários à laboração da fábrica. 
Corrupção – brada-se hoje por aí! Tecnicamente talvez, mas em termos práticos, não.
Neste este mercado têxtil, toda a gente sabia da existência de uma regra: «quem queria vender alguma coisa, teria que pagar algo a alguém de quem iria depender a compra». Disso, em regra beneficiavam «quadros intermédios» e técnicos, mas sempre recordarei as palavras daquele importante empresário – e socialmente um verdadeiro senhor – que, perante a iminência de iniciarmos negócios me disse liminarmente:
- “Meu caro: Quero para mim as importâncias que vocês – como fornecedores – se preparam para meter no bolso do meu técnico e... meu empregado. E se me confrontar com o que acabo de dizer-lhe fora deste escritório, eu nego!”. O que resultou foi que se teve que repartir as luvas por ambos, patrão e empregado, porque, a não ser assim, já sabíamos que os nossos produtos entrados para a fábrica sem o “agreement” do tintureiro, iriam ter todos os defeitos e mais alguns.
Em circunstâncias (anteriores) numa empresa industrial de lanifícios, fora-me dado o encargo de negociação e decisão na compra de uma caldeira automática (gerador industrial de vapor), para substituir uma outra ainda alimentada a lenha. Seleccionei o fornecedor e tentei “espremer” ao máximo o preço, até que chegámos à entrevista final da qual sairia a decisão da compra.
O representante da empresa fornecedora, antes de me indicar a verba final a que tinha sido possível chegar, encarou-me de frente (estávamos sós), e perguntou-me: - “Quanto é que você quer para si no negócio?” –surpreendido, respondi – “Para mim? Nada! Eu ganho o meu ordenado; isto é o meu trabalho!” – sorriu, bateu-me no ombro e disse: - “Está bem. Se quer assim, negócio fechado. Mas olhe que quem está na sua posição... da fama nunca se livra!” 
A forma de pagar luvas, variava um pouco. As empresas mais pequenas entregavam – ou propunham-se entregar, uma percentagem em dinheiro a quem podia (ou não) comprar-lhes.
As grandes multinacionais também o faziam. E fazem. Utilizavam e utilizam métodos mais sofisticados: oferta de viagens e estadias no estrangeiro a pretexto de inexistentes congressos, visitas às instalações da empresa a pretexto da apresentação de pseudo-novos produtos, etc.; também havia “brindes” mais ou menos valiosos. Tão valiosos, que podiam até materializar-se na oferta das chaves de um automóvel ou nas de um novo apartamento.
Por vezes rebentava um efémero escândalo, como o daquela técnica de tinturaria, a quem uma multinacional, fez oferta de um apartamento a estrear, e a senhora, num assomo de ética profissional, deu conhecimento do facto à direcção da empresa.
A multinacional ainda hoje lá (e cá) está, integrada num outro grupo capitalista, a senhora acabou por sair da empresa algum tempo depois, a empresa têxtil extinguiu-se juntamente com dezenas de outras numa crise anunciada do sector que acabou por acontecer, e estas luvas, que, como diria Carlos Drumond de Andrade, fazem parte integrante do enredo, continuarão a “usar-se” enquanto houver mercado.

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