Balada para D.Quixote

Um olhar de viajante na última carruagem do último combóio de uma Memória intemporal.

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Localização: Covilhã, Portugal

A generalidade daquilo que você (e eu) julgamos saber, pode estar errado, porque, em regra, assenta em «informação» com falta de rigor e imparcialidade, vinda de quem interessa formatar a nossa mente. Pense você mesmo! Eu faço-o!

29.10.09

Aqui não Entram Trabalhadores!



Caro leitor: Se chegou até aqui, estimulado pela curiosidade de encontrar a denúncia de algum tenebroso sítio, onde se pratique esta forma de descriminação e “apartheid” a trabalhadores - peço desculpa pelo equívoco. Não é isso que vai encontrar aqui.

Na época que cobre esta crónica havia gente que trabalhava, e, podem crer, muito mais do que se trabalha hoje. Só que os operários, lavradores, serralheiros, advogados, artífices, técnicos, militares, donas de casa, professores etc., todos eles se identificavam perante a sociedade como profissionais disto ou daquilo e não genericamente como trabalhadores. A designação “trabalhadores” e “classe trabalhadora”, tem uma génese muito mais política do que laboral. O conceito de trabalhador surge mais do Manifesto Comunista de 1848 do que da  Revolução Industrial.

Era em torno dessa questão, que a tertúlia reunida à noite na farmácia Soares, ali no Largo do Pelourinho, centrava o debate de forma mais ou menos consensual. Eram todos homens de meia-idade, com algum estatuto social no meio e politicamente moderados, ou mesmo de direita.
Àquela mesma hora, alguns frequentadores habituais do Café Leitão ali próximo, sentados a uma das mesas, discutia de forma mais acalorada, na prática a mesma questão da tertúlia da Farmácia. 

O que originara a simultaneidade na escolha do tema em debate, em lugares distintos e entre pessoas politicamente tão antagónicas? -
Uma Lei do Estado Novo acabada de sair, que instituídas formalmente as «corporações»,  que teriam como órgão de cúpula um ministério próprio, o das Corporações.
Em causa, afinal estava uma questão simples e de importância fundamental: a gestão e controle do mundo do trabalho. Quem o iria fazer em Portugal? O Governo através das suas «corporações» ou o movimento comunista e o seu aparelho sindical?

Para a esquerda reunida no Café Leitão, os mais ligados ao Partido Comunista (na clandestinidade), entendiam que o diploma governamental, vinha em sentido oposto à direcção dos “ventos da história”,- os seus obviamente.
Era imperiosa a “unicidade” (uma palavra que voltaria à actualidade política em 1975), das pessoas que trabalhavam em todas e quaisquer as artes e ofícios, em torno de uma única personalidade laboral-política: “o trabalhador”.

Esse “trabalhador” seria o protótipo do futuro homem-novo, agora com consciência de “classe”, e pronto para a “luta de classes” contra os seus inimigos naturais - a burguesia, os contra-revolucionários, os capitalistas, os fascistas e outros maus da fita, que havia que “esmagar” para que a Revolução Internacional Proletária triunfasse, na sua rota para a idílica “sociedade sem classe” (... e até sem moeda): o Comunismo.

A exortação dos marxistas do Café Leitão terminava aqui. Sem poderes de premonição, não poderiam prever o rumo da História e perceber o verdadeiro significado de palavras ainda desconhecidas, como “kulaks”, genocídios e deportações, que marcariam o período histórico estalinismo até a um muro em Berlim.

Afirmavam sim, que aquela medida do Governo tinha uma incontrolável conotação fascista. O que até era verdade, ainda que em versão aportuguesada. O corporativismo é um sistema político originário da Itália Fascista, no qual o poder legislativo é atribuído a corporações de ofícios, representativas dos interesses económicos envolvidos na produção, através das quais os cidadãos trabalhadores, devidamente enquadrados,  participavam na vida política pela voz de representantes por si escolhidos.

Com isto pretendia-se eliminar a “luta de classes” marxista, juntando no mesmo organismo económico-laboral - patrões, operários e o Estado -, que, como entidade neutral, serviria de árbitro e mediador dos conflitos emergentes, maximizando o crescimento económico e possibilitando a atenuação da conflitualidade entre o mundo do capital e o do trabalho.
Era esta a visão partilhada na tertúlia da Farmácia, sintetizada numa das afirmações ali ouvidas: para um país como o nosso, antes «corporações» ainda que políticas, do que «sindicatos»  inevitavelmente politizados.

Concordância  entre os campos opostos, só se verificava mesmo no regozijo comum, pela prestação que o Sporting local tivera essa época, que terminara agora em 1956, na disputa do Campeonato de Futebol da Primeira Divisão: um honroso 5.º lugar. 

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27.10.09

Divisões Panzer nos Pirinéus


A Emissora Nacional deu a notícia logo às primeiras horas daquele dia de Junho de 1940: «Paris tinha sido ocupada pelos Alemães!»

No grupo de pessoas que habitualmente ia à loja do Romano comprar o jornal e aí ficava a comentar a actualidade, a opinião era unânime: - «os exércitos de Hitler estavam imparáveis, e a ocupação da restante Europa ocidental, mera questão de tempo e de estratégia político-militar».
Alguém acrescentou a informação, ouvida na noite anterior na BBC, de que as poderosas Divisões Panzer estariam já concentradas nos Pirinéus aguardando instruções para executar a Operação Felix - a ocupação da Península Ibérica. Sentia-se medo no ar.

Em Lisboa, o Conselho de Ministros reunido em S.Bento, avaliava, preocupado a situação internacional: a França estava reduzida a um terço do seu território depois da instalação em Vichy de um governo francês colaborante com o invasor alemão e, em consequência do recente encontro de Hitler com Franco em Hendaya, na fronteira franco-espanhola, temia-se uma aproximação entre a Espanha e a Alemanha. A agressividade contra Portugal, da imprensa espanhola afecta à “Falange” de Franco,
já não pressagiava nada de bom.

Salazar e a diplomacia portuguesa, jogam com uma habilidade que teria por recompensa final, o mantimento do país fora do cenário da guerra, com o estatuto de país neutral e não beligerante. Ainda assim, saber-se-ia depois que, na pior das hipóteses, o Governo tinha um plano de contingência, pronto para ser executado e que passava, entre outras medidas, por se transferir para os Açores, se necessário.

Enquanto isso, os escaparates das livrarias exibiam o grande sucesso literário do momento: o livro de Arthur Koestler, “O Zero e o Infinito”: uma crítica contundente ao despotismo estalinista, que valeu ao autor a inimizade dos escritores Jean-Paul Sartre e Albert Camus.
Era também um livro que marcaria toda uma geração de comunistas – Partido ao qual o autor, um judeu húngaro que abandonara o seu país para escapar a um «pogrom» anti-semita - chegou a pertencer até 1938.
Koestler, viveu então um longo e acidentado percurso, com uma participação na Guerra Civil espanhola e uma passagem pela Legião estrangeira (esta para evitar uma deportação para Leste), até encontrar refúgio em Inglaterra.

A frase-chave de “O Zero e o Infinito”, ficaria para sempre a pairar sobre a “realidade negra” do chamado socialismo científico: - “O Partido nunca se engana, camarada. Tu e eu podemos enganar-nos. Mas não o Partido. O Partido é alguma coisa mais do que tu e eu e que mil outros como tu e eu. O Partido é a incarnação da ideia revolucionária na História”.

“O Zero e o Infinito”, é um desses livros que ultrapassam a sua época. Não é apenas um retrato de uma nação e seu sistema político, mas também, um “close-up” dramático sobre o estalinismo e os Processos de Moscovo.

Numa mesa à entrada no Café Central comentava-se elogiosamente a recente abertura da Exposição do Mundo Português, na Praça do Império em Lisboa, que algumas pessoas do grupo já tinham visitado e por isso a recomendavam aos outros. Na altura, nenhum deles o poderia saber, mas ter-se-iam de esperar quase 70 anos para que um evento de
dimensão semelhante, a Expo 98, tivesse lugar em Portugal.

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26.10.09

O Exílio do Vicente

Quase toda a gente que passava ou parava na zona envolvente à Praça do Pelourinho, conhecia o Vicente. Era uma figura popular, embora não fosse propriamente e em rigor, um habitante da cidade. O “Vicente” era um corvo.


Não se sabia muito bem quando, o corvo aparecera por ali e fizera poiso num espaço algures na Rua Comendador Veiga, exactamente nas traseiras do mais importante clube desportivo da Cidade. Alguém, que simpatizara com o animal improvisara-lhe por ali um poleiro, junto do qual o bicho sempre encontrava água e algum alimento. Era a sua casa.


As pessoas foram-se habituando aos gritos estridentes do corvo e ele lá fazia a sua vida voando livremente sobre os céus da cidade. Isto durou anos. Um dia, há sempre um dia como diz a canção, o Vicente meteu-se numa encrenca. A natureza que o criou, esquecera-se de o instruir sobre a existência de uma instituição fundamental da humanidade, a que todos os seres, - incluindo os corvos -, têm de obedecer para conviverem com os humanos: respeitar a sagrada propriedade individual.

Isto, independentemente do que sobre o assunto, dissesse e pensasse Proudhon ao escrever o livro “Que é a Propriedade?” que, naturalmente o Vicente não pudera ler, e até mesmo só algumas pessoas mais instruídas conheciam de nome.


Quem não queria mesmo saber dessas teorias para coisa alguma foi o cidadão Manuel Paulo Rato Júnior, que sem mais aquelas, apresentou formalmente uma queixa na Polícia contra o Vicente, acusando-o de lhe ter roubado uma escova do limpa pára-brisas do seu automóvel. Ninguém na cidade, ao conhecer-se o facto, encontrou explicação para a razão de o Vicente se interessar pelas escovas de pára-brisas do senhor Rato Júnior. Mas a queixa estava feita e havia que tomar providências, até porque, segundo o chefe da Polícia, já havia outras queixas de actuações do Vicente, que demonstravam o seu inteiro desprezo pela propriedade alheia.


A condenação do corvo foi, tal como a dos atenienses – o ostracismo. Por decisão do referido chefe da polícia da cidade, o Vicente foi levado para longe. Para isso, foi conduzido até à nascente do Zêzere na Serra da Estrela. Não há notícias da forma como reagiu à sua condição de exilado ou, se ainda hoje, quem o saberá, faz voos solitários, naquela sua obsessão pela busca de escovas de limpa pára-brisas.


Enquanto Vicente caminhava para o exílio, noutra zona do mundo – o Quénia -, então uma possessão de Inglaterra, aí sim, a violência era a sério. Tinha começado a insurreição dos Mau-Mau que se veio a saldar, quando da sua extinção. sete anos após, por 13 mil mortes, das quais cerca de 1600 tiveram origem em enforcamentos, e 70 mil prisões. Eram os primeiros ventos da violência que iriam varrer a África.


Nesse dia, o jornal “O Século” que começou a ser distribuído na cidade cerca das 16 horas, tinha como tema de capa a reunião em Ciudad Rodrigo de Salazar e Franco. Na orelha direita do cabeçalho uma data: 1952.


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