Balada para D.Quixote

Um olhar de viajante na última carruagem do último combóio de uma Memória intemporal.

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A generalidade daquilo que você (e eu) julgamos saber, pode estar errado, porque, em regra, assenta em «informação» com falta de rigor e imparcialidade, vinda de quem interessa formatar a nossa mente. Pense você mesmo! Eu faço-o!

4.11.08

A “mala leche” do Banco de Portugal


A Revolução da Maria da Fonte quase levou os especuladores financeiros à bancarrota. No último momento foram salvos pela fusão da Companhia Confiança Nacional com o Banco de Lisboa. Desta operação nasceu o Banco de Portugal há 160 anos. Filho da especulação desenfreada que então reinava em Portugal e de um golpe palaciano da rainha D.Maria II, o Banco teve uma génese complicada, de que ainda hoje parece ressentir-se, como se pode constatar pela actual contestação à sua função reguladora do sistema bancário português.

Logo em 1834, após a vitória liberal, se registaram negócios de grande vulto e escrúpulos diminutos. Os bens tomados às ordens religiosas foram vendidos. Concentraram-se em muito pouca mãos as melhores fatias, como a Companhia da Lezírias, que em 1835 se estimava divisível por 500 a 600 exploradores agrícolas viáveis. Os mais ricos puderam pagar, muitas vezes com títulos de dívida pública que aos cofres do Estado não traziam nenhum metal sonante, e ficaram com tudo num leilão em que os pequenos arrematadores também era supostos terem alguma chance.

A especulação propiciada pelo golpe da direita cartista, em 1842, tinha, portanto, os seus antecedentes e as suas raízes. O Governo de Costa Cabral anunciou obras públicas importantes e adjudicou essas obras. As companhias adjudicatárias ficavam com o direito de cobrar portagens nas estadas construídas. As companhias das Obras Públicas e a das Estradas do Minho criaram-se na mira desse dinheiro fácil – não com empresários de obras, observava Oliveira Martins, - mas como intermediários entre o Estado e aqueles que efectivamente viriam a prestar o serviço.

O Governo entregou também a companhias capitalistas os monopólios das mais rentáveis actividades económicas. Em troca dum empréstimo de 4.000 contos à Fazenda – cerca de 20 mil euros actuais -, a Companhia Confiança Nacional obteve a concessão por 12 anos do tabaco, do sabão e da pólvora. Em conjunto com figuras gradas do Banco de Lisboa e da Associação Comercial, a Companhia criou uma nova empresa destinada a explorar a concessão. Para contratos deste tipo, deixou-se livre curso à criação dum mercado onde formigavam subconcessionários dispostos a pagar por eles, e não desdenhavam a eventualidade de, depois, os trespassarem com mais algum lucro adicional. Destas companhias falava José da Silva Carvalho, várias vezes ministro da Fazenda, como de “covis onde se anicharam tantos ladrões”.

À especulação comercial da década anterior veio juntar-se uma especulação financeira cada vez mais intensa. As companhias ofereciam juros elevados para captar capitais livres e concediam abundantes créditos ao Estado. O Banco de Lisboa emitia notas, e a Companhia Confiança Nacional obtinha bom dinheiro pelas suas promissórias. A bolha especulativa não parava de inchar. O que as companhias arrecadavam do lado do Tesouro não era menos importante.

O Estado tratava de pagar as suas dívidas lançando novos impostos, principalmente indirectos – cegos e penalizadores dos pobres, como costumam ser os impostos indirectos. Para a cobrança de impostos directos, tornavam-se entretanto visita frequente e odiada nas aldeias os avaliadores da Fazenda. Os pequenos camponeses, ensanduichados entre as obrigações feudais ainda não abolidas e a carga fiscal já reclamada pela moderna especulação capitalista, ferviam de fúria.

Em Março de 1846 estalou a Revolta da Maria da Fonte. Os liberais de salão pintaram as multidões como um mulherio desgrenhado, analfabeto e cacicado por padres miguelistas. A lendária camponesa do lugar da Fonte teria sublevado províncias inteiras contra as leis de saúde modernas, que proibiam a sepultura nas igrejas.

Fosse qual fosse o rastilho, sabe-se de ciência certa que a grande massa de combustível tinha a ver com a manutenção dos odiados tributos feudais, com o lançamento de novos impostos, com o pagamento de novas portagens. A agitação em torno dos funerais rapidamente deu lugar a agressões contra agentes da Fazenda.

Um pouco por todo o lado, foram incendiados arquivos onde se encontravam folhas de impostos ou registos dos anacrónicos encargos foreiros. No fogo deviam desaparecer as “papeletas da ladroeira” com expressivamente lhes chamava o povo sublevado.

As expedições punitivas enviadas de Lisboa foram fracassando. Lúcido, Costa Cabral reconhecia nas Cortes que “esta revolução é diferente das outras”. Num século que, ainda antes de chegar a meio, já tinha visto dúzias de quarteladas – vilafrancadas, martinhadas, belenzadas, emboscadas e outros golpes castrenses – era novo ver homens de foice e roçadora em punho a enfrentarem as tropas e tropas a passarem-se para o lado dos revoltosos. Entre Março e Abril a revolta alastrou a todo o Minho, e os sátrapas cabralinos foram sendo substituídos, em cada povoado, por novas autoridade eleitas em assembleias. Entretanto Costa Cabral abandonava o poder e refugiava-se em Espanha.

A primeira medida do novo Ministério de Palmela destinou-se a salvar os negócios dos agiotas. As bolhas especulativas podem rebentar por diversos motivos – entre elas por motivo de revolução. O movimento da Maria da Fonte tinha muito mais de revolução autêntica do que nenhuma das habituais quarteladas dos generais. a fixação intuitiva dos camponeses nas “papeletas da ladroeira” fazia os especuladores recear o pior. Enfiando uma carapaça que na verdade lhes servia, eles começaram a imaginar o que aconteceria às suas próprias “papeletas” – dos bancos, das companhias, dos contratos monopólicos – no dia, talvez próximo, em que os artesãos, os operários, os lojistas, fossem contagiados pela piromania vinda do campo. Desfazer-se dessas “papeletas” tornou-se de súbito uma obsessão para todos os que, até à véspera só sabiam correr a açambarcá-las. A bolha rebentou e o valor dos papéis caiu a pique.

O novo governo apressou-se a pôr a mão por baixo às notas do Banco de Lisboa e às promissórias, em queda livre, da Companhia Confiança Nacional. Decretou o curso forçado dumas e doutras durante 3 meses. O Banco de Lisboa, viu-se ultrapassado pelos acontecimentos quando as suas notas começaram a ser trocadas a toda a pressa. Por ter aberto demasiado crédito ao Tesouro, ele achava-se de súbito incapaz de resgatar as suas notas. Ao Estado, que era seu devedor, competiria impedir a bancarrota. Na verdade, com a falência da Confiança Nacional só se afundariam as inflacionadas expectativas de lucro dos especuladores. Não obstante, o Governo de Palmela decidiu socorrer ambos os náufragos.

Contudo, Banco emissor e Companhia continuavam à beira do abismo. Salvos ambos por uma moratória, viam-se dispensados de converter os seus papéis em numerário que não tinham. Mas o numerário que lhes faltava iria continuar a faltar. Sucessivas moratórias levaram o período até Dezembro, eram só outros tantos remendos. Ao mesmo tempo este Governo estava atarefado em aliviar e descomprimir a tensão no campo: em Junho promulgou-se uma nova lei de forais, ratificou-se a abolição das obrigações feudais, amnistiando três quartos das rendas em dívida desde 1832, prorrogando prazos para liquidação fiscal e anulando multas de até aí. Medidas mínimas e, mesmo assim, desagradáveis para os especuladores financeiros, que conheciam a fragilidade do seu castelo de cartas e sabiam que bastaria um espirro para o deitar por terra.

Entre o pavor dos campos assolados por uma insurreição incontrolável e das cidades sublevadas pelo Setembrismo, entre o desgosto pelos tons vagamente reformadores do Governo e pela sua pouca eficiência na operação de socorro aos valores especulados – a agiotagem decidiu passar à acção. Já não lhe bastavam moratórias nem adiamentos. Precisava duma solução de fundo. Começando por cima, ganhou para o seu golpe de estado a rainha e o marechal Saldanha. Em 6 de Outubro, a boa senhora chamou Palmela ao palácio real, prendeu-o e nomeou Saldanha para o seu lugar.

A solução de fundo não tardou. O novo governo promulgou legislação obrigando a aceitar os papéis desacreditados e fixando multas pesadas, ou mesmo degredo, para quem recusasse recebê-los. Depois decretou a fusão da moribunda Companhia Confiança Nacional com o Banco de Lisboa. Como num sistema de vasos comunicantes, as promissórias da Companhia penduravam-se nas notas do Banco. Graças à fusão o valor das acções da companhia moribunda viu-se subitamente triplicado. Assim se eclipsavam as moratórias e nascia em 19 de Novembro o Banco de Portugal – filho da especulação financeira e do golpe palaciano de especuladores e agiotas.

O banco recém-nascido não esperou para ocupar a sua posição nas trincheiras da rainha e do marechal putchista ( Saldanha foi o homem que mais pronunciamentos desencadeou em oito séculos de história portuguesa). Entrou para a guerra depauperado pela transfusão com que salvara os especuladores e saiu dela ainda mais exausto por massivos desembolsos de moeda metálica. Em Junho de 1847, o Paço da rainha ganhava a guerra contra os pés-descalços, e o Banco de Portugal punha mãos à obra de reconstruir as suas reservas. Em Setembro ele conseguia do Governo, que se voltasse a exigir nos pagamentos à Fazenda metade em moeda metálica – contra um terço que se estava exigindo desde Junho. O fim da guerra, argumentava-se, logo reanimaria a procura das notas. Mas a ilusão durou pouco. Em Dezembro, o Governo punha fim ao curso forçado, anunciando, entre outras medidas que passaria a aceitar as notas pela sua cotação, e não mais pelo seu valor nominal.

Ao longo do tempo o Banco de Portugal, manifestou uma vocação conspirativa e tomba-governos. Em 1850 o ministro da Fazenda, António José de Ávila, adoptou uma política que tendia a fazer do Estado cliente da Companhia do Tabaco, nas mesmas operações em que antes solicitava o Banco de Portugal. Logo o lóbi parlamentar do banco reagiu com violência, tentando derrubar o ministério. Seguiu-se uma altercação parlamentar, com deputados a acusarem-se uns aos outros de lutarem pelas suas próprias “manjedouras”. E tudo desaguou novamente num golpe de estado de Saldanha, a defender os interesses do Banco de Portugal, contra os da Companhia do Tabaco.


Fonte: Texto de António Louçã – Expresso.

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