Balada para D.Quixote

Um olhar de viajante na última carruagem do último combóio de uma Memória intemporal.

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Localização: Covilhã, Portugal

A generalidade daquilo que você (e eu) julgamos saber, pode estar errado, porque, em regra, assenta em «informação» com falta de rigor e imparcialidade, vinda de quem interessa formatar a nossa mente. Pense você mesmo! Eu faço-o!

24.4.08

Gente Que Eu Conheci

História de outros tempos, envolvendo um Pataco falso, velhos guarda-livros,
caixeiros de loja com "guarda-pó" e clientes de colchetes e e botões
que eram tratados por Vossa Excelência।

Vidal era o velho guarda-livros da empresa. Imigrante galego (o seu primeiro nome era Ramon) terminou uma viagem de combóio em terceira classe, numa cidade da província em Portugal. Chegou ainda garoto, chamado por um parente. Ficou por cá toda a vida.

Iniciou-se no comércio da época como aprendiz, depois foi marçano de loja, constituiu família, e um dia tentou subir na vida, estabelecendo-se com uma loja de fazendas brancas e retrosaria.
As coisas não lhe correram bem e um dia, passados anos, a loja de panos brancos do Vidal vai à falência. Então ele, que já não era novo, agarrou imediatamente a oportunidade que surgiu de ocupar o cargo de guarda-livros em uma empresa têxtil em formação.
Se, na altura já se falasse em currículo, o dele só teria duas ou três palavras: respeitabilidade social e uma honestidade sem mácula.

A contabilidade naquele tempo, - “a escrita” - das empresas estava longe de se revestir da complexidade e exigências fiscais e legais dos dias de hoje e, durante o seu percurso no comércio ele deve ter adquirido as noções básicas, quem sabe se através do popular livro “O guarda-livros Sem Mestre”?

Escriturava uns livros enormes, que regressavam depois sempre ao cofre-forte da empresa. Usando aparos especiais para obter efeitos caligráficos, os guarda-livros desenhavam e lançavam, com uma caligrafia tão rebuscada como a dos antigos copistas da era pré-Guttemberg, os diferentes movimentos contabilísticos, enchendo enormes colunas com números que depois tinham que ser somados mentalmente, sem qualquer auxiliar para além da tabuada aprendida na escola.

Quando conheci o Vidal, ele, em rigor, já era assim uma espécie de guarda-livros honorário da empresa. A tecnologia (da época) tinha entrado em acção e a primeira coisa que fez desaparecer foi o termo guarda-livros, que deu lugar ao, mais moderno “contabilista”. Estavam então a surgir as máquinas mecânicas de calcular e a contabilidade passou a fazer-se num tipo especial de máquinas de escrever, - a dita contabilidade mecanográfica - onde ao serem efectuados os lançamentos sobre um conjunto de formulários especialmente formatados, estes, através de decalque com papel químico, replicavam directamente os lançamento sobre os formulários respectivos.

Conclusão: deixou de haver lugar para os lançamentos caligráficos feitos nos tais livros enormes, para as colunas somadas à mão e ... para pessoas como o velho guarda-livros Vidal, incapaz de, na sua idade, absorver e utilizar a nova tecnologia.

Foi nessa fase que me relacionei com ele.
Se no guarda-livros Vidal alguma coisa diferia daquelas personagens descritas por Eça de Queiroz e outros escritores, que tinham à sua responsabilidade as contas dos casas fidalgas, função que desempenhavam com grande seriedade e prestígio, esta diferia só no sentido de o homem era ainda mais dedicado e submisso a quem lhe dera trabalho em fase difícil da sua vida – o agora chamado “patrão” e que no tempo de Eça se designava por Senhor, Fidalgo ou talvez Amo.

Sem que alguma vez lho tenha sido ordenado, o sr. Vidal, quando o patrão regressava de uma viagem, muitas vezes a altas horas da madrugada, esperava-o sentado nas escadas da sua residência, para este lhe transmitir qualquer imaginária ordem, a que faria dar seguimento na fábrica, na manhã seguinte.

Ao que se dizia, e devia ser certo, a “ordem” que às três ou quatro da manhã, o patrão dava ao seu humilde servidor, era uma reprimenda:
“- Oh, sr Vidal! Que disparate esse de estar aqui à minha espera a estas horas! O senhor deveria era estar na cama a descansar. Tenha juizo homem e deixe-se destas coisas !...”
Não obstante, a fidelidade canina do snr Vidal falava mais alto e provavelmente ao terminar a próxima viagem o empresário já não estranharia se encontrasse o pobre homem, dedicadamente, à sua espera.

Testemunha presencial de tempos que eu não vivi, eu incitava-o sempre que oportuno a desfolhar as suas recordações. E ele contava, contava...

Hoje recordo algumas dessas narrativas, da sua vida comercial, numa altura em que os marçanos e caixeiros, vestidos com o guarda-pó caracteristico da profissão, ainda se dirigiam às clientes, invariavelmente com um Vossa Excelência...

Retenho esta pequena história:
Certo dia na loja, enquanto o sr, Vidal media “duas “quartas” de pano de lençol de boa qualidade a uma cliente, o empregado atendia solicitamente uma outra, que se “aviava” com os “preparos” (elástico, nastro, linha de coser, chumaços e coisas assim ...) para um vestido que ia fazer.
Tudo embrulhado cuidadosamente a cliente paga, colocando algumas moedas sobre o balcão. O caixeiro pega nas moedas e uma delas (de 1 pataco) chama-lhe a atenção...

Subservientemente e com toda a delicadeza, tenta fazer notar a anomalia à cliente. Deste modo, conforme me narrou o sr. Vidal:

- “Vossa Excelência, desculpará ...”
- “mas há factos “factíveis” e casos muito susceptíveis de acontecer ..
- e como não quero melindrar Vossa Excelência ...-

(faz uma pausa, engole em seco e conclui de forma, agora surpreendentemente muito categórica):

- "O Pataco é Falso !!!"

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